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David Fagundes, lavrador de versos

 

Em tempo de globalização e massificação, e numa era marcada pela mistificação e pela desidentificação, há, nas ilhas dos Açores, um punhado de estudiosos atentos à realidade local e dispostos a contribuir para a valorização cultural e histórica das suas comunidades.  

Liduino Borba é um desses historiadores locais que, numa linha de contínua e continuada pesquisa, vem mostrar e demonstrar que é a partir da História local que se chega à História universal. De resto, e num outro contexto, já no-lo havia lembrado Miguel Torga: “O local é o universal sem paredes; (…) quanto mais local, mais universal”.

Há grandeza em ser-se historiador local. Gaspar Frutuoso, Frei Agostinho de Mont´Alverne, Frei Diogo das Chagas, entre tantos outros que lhes sucederam, foram também historiadores locais e hoje não podemos passar sem eles.  

Por conseguinte, quero saudar o rigor e a paixão que Liduino Borba tem vindo a imprimir sobre a historiografia local, nomeadamente nos estudos que vem efectuando sobre pessoas, acontecimentos e instituições ligados à ilha Terceira.  

Ultimamente este autor tem vindo a trabalhar em materiais de literatura popular, sendo o livro David Fagundes – Versos duma Vida (Velhas, Quadras e outras Rimas (edição de autor, 2009) o testemunho disso mesmo.

Aqui se dá a conhecer um terceirense, David Fagundes, homem do povo, que escreve versos como quem cultiva a terra. São versos de uma vibrante sinceridade e que, captando momentos da sua vida vivida, retratam, de forma admirável, pedaços da geografia física, afectiva e humana da Terceira.

As 370 espécies de Velhas, escritas por David Fagundes e recolhidas no livro em apreço, dão bem a ideia da agudeza de espírito, do humor sagaz, da capacidade de ironia e de sarcasmo deste poeta popular. Fazer humor numa décima não é fácil, nem é para todos – só para os que possuem o dom inato do improviso. E, no entanto, estamos na presença de um versejador sui generis, já que escreve Velhas mas não as canta em público porque, assumidamente, recusa-se a participar em cantorias. Na Velha nº 14, David Fagundes diz-nos, claramente, que não se quer expor: 

                        “Cantar as Velhas não devo

                        Porque as faço e escrevo

                        Mas não me ficam de cor.

                        Enquanto outros sem saber

                        Não se cansam de dizer

                        -Nas Velhas sou o melhor.

                        Eu não me esforço tanto

                        Já o disse doutra vez

                        Faço Velhas mas não canto

                        - Não sou artigo chinês”. 

A grandeza da arte poética de David Fagundes está precisamente nessa espontânea força criadora. Porque estes são versos de circunstância (aliás, toda a poesia é de circunstância), quer o autor cante as licenciosas Velhas, quer escreva sobre os afectos que devota a familiares e amigos.  

Exprimindo-se em quadras, quintilhas, sextilhas, oitavas e décimas, expressando-se em versos que deixou escritos em cartas, marchas, cantigas ao desafio (estas últimas enquanto mero exercício de escrita), ou lembrando efemérides, aniversários, baptizados, óbitos, viagens, natais, coisas vividas, sentidas e evocadas, David Fagundes revela-se sempre como um verdadeiro artífice da palavra, trabalhando-a oficinalmente.

Por outro lado, este poeta popular veicula, nos seus versos, uma inabalável fé cristã, escrevendo, com os olhos da memória, sobre o fluir do tempo, a saudade, a distância, a ausência, a viagem, o afecto, o amor, a vida e a morte no registo mais sentido de uma escrita pessoalíssima e profundamente humana. Eis um homem que através das suas rimas se dá aos outros, ele que é portador de uma consciência crítica e de um apurado sentido de justiça, dando disso conta no que escreve e na maneira como escreve.

O curriculum académico nada tem a ver com a capacidade de versejar. Esta capacidade poética tem raízes fundas e profundas nas cantigas de amigo, nas cantigas de escárnio e maldizer e nos cantares de gesta medievais, de que o cancioneiro e romanceiro açorianos são exemplos valiosíssimos. Por outro lado há a considerar aquilo que sempre foi uma característica da cultura popular açoriana: a oralidade. Quero com isto dizer que David Fagundes dá, hoje, forma e conteúdo a toda uma tradição poética e musical de que é herdeiro.

Saúdo, com apreço e admiração, estes Versos duma Vida, trabalho de muito empenho e mérito.

Bem documentado e informado, Liduino Borba dá, à presente obra, tratamento criterioso e meticuloso, ele que, bem apetrechado em termos teóricos, possui a capacidade de informar, esclarecer, decifrar e avaliar. O que, à partida, poderia ser meros escritos para memória familiar, torna-se, afinal, num livro de muito interesse que se lê com enorme prazer – e, no que às Velhas diz respeito, com hilariante fruição…

Imperioso é que se continue a trabalhar no domínio da recolha e divulgação de materiais de literatura oral. Fazendo-o, estaremos a contribuir decisivamente para a preservação da nossa memória colectiva de povo insular, isto é, da nossa identidade cultural. 

Queremos ouvir a sua opinião, sugestões ou dúvidas:

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